domingo, 19 de dezembro de 2010

Desigualdade Escrava e Diferença Negra no processo de formação e superação do escravismo colonial

A relação entre Desigualdade e Diferença é de fato um capítulo bastante complexo na história das sociedades humanas. Uma sociedade pode assumir – concreta ou imaginariamente – um determinado tipo de conexão entre diferença e desigualdade (ou entre alguns tipos de diferenças e a desigualdade social ou política). Nas democracias modernas desenvolve-se o imaginário (nem sempre correspondente às situações concretas e efetivas) de que certas diferenças não devem gerar desigualdade. Neste caso, considera-se que devem ser tratadas com igualdade as diferenças de cor, sexo ou religião. Nem sempre foi assim, e ainda não é assim em diversas sociedades que afirmam concreta e imaginariamente o vínculo entre a desigualdade social e as diferenças deste tipo. São notórios os exemplos medievais de segregação espacial de certos grupos religiosos em bairros específicos, e não está longe no tempo o exemplo do Apartheid, que correspondeu à bem conhecida política de segregação étnica oficializada na África do Sul entre o período de 1948 a 1990 . Nestes casos, a conexão entre Diferença e Desigualdade implica também em Exclusão ou Segregação, outras noções que colaboram na mesma rede de significados. E discriminar remete também ao cultivo daquilo que podemos conceituar como “preconceito” – um “conjunto de atitudes que provocam, favorecem ou justificam medidas de discriminação” (Rose, 1972: 162).
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Outro aspecto a se considerar na história da relação entre Desigualdade e Diferença refere-se à possibilidade de que uma determinada ‘contradição’ relacionada com Desigualdade passe a ser lida socialmente como uma ‘contrariedade’ relacionada com Diferenças. O exemplo que estaremos examinando mais sistematicamente neste ensaio é o da oposição entre Liberdade e Escravidão. Naturalmente que, se considerarmos que a Escravidão é a privação de Liberdade, deveremos tendencialmente localizar este par de contraditórios no eixo circunstancial da Desigualdade. O Escravo é aquele que perdeu a Liberdade. A escravidão ou a condição de homem livre constituem, à partida, cada qual um ‘estado’, uma circunstância (a princípio, pode-se postular, estas duas noções interagem reciprocamente como contradições, e não como diferenças).
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A estratificação social no Brasil Colonial fundou-se precisamente no deslocamento imaginário da noção desigualadora de “Escravo” para uma coordenada de contrários fundada sob a perspectiva da Diferença entre homens livres e escravos. Nesta nova perspectiva, um indivíduo não está escravo, ele é escravo. Toda a violência maior deste novo modelo de estratificação social típico do Brasil Colonial esteve alicerçada neste deslocamento, nesta transformação de uma contradição em contrariedade, nesta estratégia social imobilizadora que transmudava uma circunstância em essência. E é digno de nota que os abolicionistas tenham se empenhado precisamente em reconduzir o discurso sobre a Escravidão para o plano das desigualdades, recusando-se a discutir a oposição entre Livres e Escravos no plano das diferenças. Alguns, inclusive, passaram a discutir a desigualdade da Escravidão em conexão com outras formas de desigualdade, e ao tempo em que propunham a abolição, preconizavam também reformas fundiárias e jurídicas. Destronada do plano imobilizador das Diferenças em que fora assentada durante o processo de formação e implantação do escravismo colonial, a Escravidão passava a coabitar no discurso abolicionista com outras Desigualdades, e algumas destas desigualdades podiam ser enfrentadas naquele momento pelas mesmas práticas, pelos mesmos discursos, pelas mesmas ações sociais.
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A questão da Escravatura, mas também outras que poderiam ser citadas, permite-nos sustentar que os deslocamentos impostos entre os planos da Desigualdade e da Diferença podem freqüentemente implicar em opressão ou dominação – mas também em libertação, quando o deslocamento refere-se a uma desconstrução do deslocamento opressor no sentido inverso, como foi o caso dos discursos abolicionistas que reconduziam a noção de escravatura do plano das diferenças ao das desigualdades. É preciso fazer compreender a Escravidão como Desigualdade para, ato contínuo, propor sua extinção através de uma ação social.


2. [As Diferenças que são construções históricas]

Para avançarmos na questão que nos interessa, será preciso considerar que, se as Desigualdades são sempre construções históricas, as Diferenças também podem sê-lo. Existem obviamente as diferenças naturais que impõem a sua evidência ao mundo humano, como o sexo ou as diferenças etárias, embora também tenham se desenvolvido em tempos mais recentes discussões complexas sobre a historicidade e construção cultural que envolvem as divisões de sexo ou idade . Mas existem, sobretudo, as diferenças culturais propriamente ditas, aquelas que são ainda mais visivelmente construções sócio-culturais, e algumas delas precisam ser examinadas no plano de sua historicidade porque eventualmente produzem desigualdade social. Discutiremos precisamente um conjunto de noções historicamente construídas que se entrelaçaram no século XVI em torno da prática da Escravidão Moderna: Negro, Escravo e Africano.
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Liberdade e Escravidão, como já foi proposto, correspondem a estados que tendencialmente deveriam ser dispostos no eixo contraditório das desigualdades, e não na coordenada de contrários das Diferenças. “Escravo”, neste caso, seria uma noção referente à Desigualdade que se estabelece relativamente à liberdade (ser escravo é estar privado da liberdade, é ser vítima de uma desigualdade social relacionada ao direito de agir livremente). Ser “Negro”, por outro lado, é hoje uma Diferença marcante nas sociedades modernas. Mas esta Diferença tem também uma história. E em algum momento esta história foi obrigada a entrelaçar-se com a idéia desigual de Escravidão para dar suporte a esse cruel regime de dominação que foi o Escravismo Colonial.
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Entre os séculos XVI e XIX, os “negros” não se viam na África em absoluto como “negros”. “Negro” foi na verdade uma construção “branca” – já que os povos africanos enxergavam a si mesmos como pertencentes a grupos étnicos bem diferenciados e em geral reciprocamente hostis. Na verdade, o aspecto diferencial “Negro” foi grosso modo construído no Ocidente Europeu a partir da superação de diversas diferenciações que existiam (e existem até hoje) nas sociedades tribais africanas. Dito de outro modo, a diferença “negro” foi construída a partir da igualização (ou da indiferenciação, seria melhor dizer) de uma série de outras diferenças étnicas que demarcavam as identidades locais no continente africano, sendo importante ressaltar que isto não ocorreu repentinamente, mas sim no decurso de um processo de quatro séculos que envolveu a implantação, realização e superação do escravismo – um processo que a princípio “mescla, sem as confundir, as etnias, tribos e clãs” (Mattoso, 1982: 23), mas que ao mesmo tempo suprime gradualmente todas estas diferenças na consolidação da representação de “Negro”.
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Para entender as bases iniciais deste complexo processo, será importante evocar a própria diversidade afro-negra à época que precede a implantação do tráfico negreiro. Por ora, avancemos na análise do combinado de noções que se forma para dar apoio ao projeto escravocrata colonial.
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Se a idéia de “negro” foi construída por supressão ou minimização das diferenças tribais, é preciso salientar que os negros africanos tampouco se viam como “africanos”. A “África” foi também uma construção da “Europa”. O norte, o centro, o sul, a banda oriental, o litoral atlântico, para apenas falar das macro-regiões da África, eram pressentidas pelos povos que as habitavam como regiões geográficas e culturais bem diferenciadas. Quem pela primeira vez avaliou estes povos a partir de uma identidade étnica e continental – enquadrada em um lugar único – foi o próprio homem “branco” europeu, já que esta questão não se colocava então para os “negros africanos” da época .
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Por fim, a adaptação do próprio conceito de “Escravo”, transformando-o simultaneamente na base de um determinado sistema de produção e, sobretudo, em peça central definidora de um comércio extraordinariamente rendoso nos moldes modernos foi também uma construção branca. Bem entendido, a Escravidão era uma forma de Desigualdade que já vinha existindo desde a Antigüidade, mas de modo geral apresentava outras singularidades. Em boa parte dos casos, a Escravidão Antiga apresentava-se como um produto da Guerra: o escravo podia ser, por exemplo, um homem livre que fora vencido e capturado belicamente. Também em diversas sociedades da Antiguidade apresentava-se, ao lado da escravização surgida da guerra, o caso menos freqüente da escravidão por dívidas, novamente uma circunstância, e já desde a Mesopotâmia comprovam-se ainda os casos de escravização de crianças abandonadas e da venda de familiares como escravos.
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Assim como na Antigüidade, a escravidão sempre existira na África. Só que na realidade africana pré-colonial tinha-se uma escravidão de importância periférica, e que além disto assumia conotações diversas que serão discutidas mais adiante. A contribuição do homem branco europeu para esta triste prática hoje oficialmente abolida foi introduzir a Escravidão, a partir do século XVI, em um comércio trans-oceânico de âmbito mundial, e também transformá-la em peça-chave dos sistemas econômicos coloniais até sua abolição nos vários países da América . Para isto, o traficante europeu precisou interagir com a “ponta negra” do tráfico – da qual participavam por exemplo os chefes africanos das etnias litorâneas, que organizavam nos séculos XVII e XVIII guerras e expedições de captura para obter no interior africano homens de etnias várias para serem vendidos como escravos.
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Enquanto as formas de escravidão que eram até então conhecidas contrastam com a Escravidão Moderna por terem se apresentado menos extensas, menos comerciais e mais heterogêneas (o escravo na Grécia ou na Roma Antiga podia vir de procedências diversas), na instalação do sistema escravista colonial estaremos diante de um novo sistema de escravidão que abarca uma extensão oceânica, apresenta muito mais intensidade comercial e vai se nutrir de escravos trazidos exclusivamente da África (Blackburn, 2002: 19) – vinculando esta origem, ela mesma uma construção que desconsidera as origens locais, a uma diferença socialmente selecionada que será a da cor da pele.
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Neste novo contexto, se antes a Escravidão apresentava-se amiúde como um subproduto da Guerra, agora o objetivo de capturar escravos é que passaria a produzir a Guerra. O Escravo passou a ser um produto tão valorizado na nova realidade econômica que os próprios grupos tribais africanos organizavam expedições para capturar escravos para depois vender aos europeus . Ocorreu mesmo que estados e reinos africanos que eram estáveis antes da chegada dos europeus desaparecessem, particularmente a partir de meados do século XVII, para dar lugar a novos estados “nascidos do tráfico e vivendo dele” (Mattoso, 1982: 27). A esta questão voltaremos mais adiante, pois ela nos forçará a examinar os vários modelos de escravidão que já existiam na África pré-colonial do ponto de vista de sua relação com os conceitos de Desigualdade e Diferença.
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Por ora, registremos que a desconstrução da diversidade de etnias negras e das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro de uma grande raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamente homogêneo – e a simultânea visão desta parte da humanidade como “inferior”, ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano como lugar exterior à “civilização” – tudo isto, juntamente com uma nova noção de “escravo”, constituiu o fundo ideológico da montagem do sistema escravista no Brasil. Desigualdades e Diferenças várias, neste caso construídas historicamente, entrelaçaram-se para dar apoio a um dos mais cruéis sistemas de dominação que a História conheceu.
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Os primeiros portugueses que procederam à montagem do sistema escravista no Brasil estavam cientes da diversidade africana, e portanto das possibilidades de afirmação de diferenças a partir desta diversidade . Mas eram diferenças que, no caso, não lhes interessavam. Motivar as rivalidades étnicas no próprio continente africano, como veremos mais adiante, era extremamente interessante para os traficantes negreiros, já que era da massa de vencidos nas guerras e conflitos inter-tribais que os traficantes negreiros obtinham os indivíduos que seriam transformados em escravos. Mas permitir que estas identidades étnicas se fortalecessem já nas colônias onde os africanos seriam submetidos à escravidão, isso já era particularmente perigoso. Por isto os compradores de escravos para a empresa agrícola ou para as atividades urbanas costumavam separar estrategicamente os indivíduos provenientes de uma mesma etnia e região cultural, misturando escravos de diferentes procedências e etnias – tudo para evitar que fossem revividos certos padrões de identidades locais africanas que não estavam assim tão distantes (e, conseqüentemente, prevenir potenciais revoltas). Construir a idéia do “negro”, da realidade que transcende todas as etnias, que as supera ou mesmo as cancela, era o procedimento-chave. Por outro lado, se para fins de censo e controle era preciso classificar os negros despejados pelo tráfico no Brasil, também se operava à construção de novas diferenças, muito pouco coincidentes com as realidades étnicas originais. Incorporava-se à identidade do negro uma procedência geográfica que via de regra relacionava-se aos portos africanos de tráfico que os haviam exportado para o Brasil, independente de sua verdadeira origem. Cabindas, minas e congos, por exemplo, eram designações que tinham origem em portos ou circuitos de tráfico específicos, como veremos oportunamente. Angolanos, congoleses e benguelas eram referências a circuitos geográficos onde apareciam embaralhadas muitas etnias.
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À parte as classificações impostas por necessidades práticas, o delineamento de uma dimensão racial “negra” por oposição ao “branco” firmou-se mesmo como a peça-chave de um novo constructo ideológico. Com isto, o negro no Brasil e no resto da América passou a ser visto como uma realidade única e monolítica, e com o tempo foi levado a enxergar a si mesmo também desta maneira. Perdidos os antigos padrões de identidade que existiam na África, o negro afro-brasileiro sentiu-se compelido a iniciar a aventura de construir para si uma nova identidade cultural, adaptando-a à própria cultura colonial. Com isto iriam surgir novos padrões religiosos, diversificadas alternativas sincréticas, uma nova arte e uma nova música, e tantas outras contribuições que já não são propriamente africanas. Daí que não se pode falar propriamente de uma componente cultural africana de nossa sociedade, mas sim de uma componente afro-brasileira, inauguradora de novas especificidades.
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Conforme se vê, ocorreu neste processo histórico o entrelaçamento de uma noção que habita ou deveria habitar o plano da Desigualdade Social (a noção de Escravo) com estas duas diferenças culturais que foram a Negritude e o pertencimento africano (ou pelo menos a procedência ou a ancestralidade africana). Obviamente que, mais tarde, estas noções foram se desentrelaçando. Já mencionamos o fato de que fez parte da montagem ideológica do sistema Colonial o deslocamento da idéia de Escravidão, que passou do eixo circunstancial e contraditório da Desigualdade para a coordenada essencial dos contrários que pontuam as Diferenças. E que a seu tempo as idéias abolicionistas passaram novamente a discutir a Escravidão como Desigualdade, e não mais como Diferença, marcando o retorno discursivo de uma noção que já havia pertencido ao plano da Desigualdade. Este processo de releitura das noções que haviam dado suporte ao sistema colonial, e o seu redesligamento umas das outras, mostra como as Desigualdades ou Diferenças estão sujeitas a deslocamentos que correspondem a transformações sociais mais profundas que se processam na sociedade.


3. [Das diferenças negras às diferenças escravas]

Será nosso objetivo nas próximas linhas refletir sobre a Construção Social da Cor neste Brasil que remete à montagem do sistema escravista-colonial – verificando inicialmente que diferenças foram sacrificadas no altar desta diferença maior que se relaciona à cor socialmente percebida, e que materiais históricos e culturais foram remoldados para a construção dos ídolos da pigmentação e despigmentação. Em seguida, será o momento de examinar o processo de desigualdade social que se instaura nesta construção, que a ampara, que absorve ou supera, através do Escravismo Colonial, outras formas de desigualdade escrava que o precederam na própria África. Processo Desigualador, enfim, que prossegue para depois da própria abolição, mas já fugindo aos horizontes de análise que aqui propomos. Retornemos, por ora, aos primórdios, à realidade africana que precede o tráfico.
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Vimos em exemplo firmado anteriormente que na África pré-colonial os africanos percebiam diferenciações intertribais que eram muito claras para eles, gerando padrões de solidariedade e hostilidade. Diferenciações de altura, de espessura labial, de contorno do rosto ou de tipo de cabelo podiam ser tão ou mais importantes para compor a distinção de etnias do que o tom da pele – sem contar que as várias sociedades tribais acrescentavam a estas diferenças naturais outras de ordem cultural, como um corte de cabelo, o uso de brincos, a utilização de determinada indumentária, e assim por diante. A empresa do tráfico negreiro embaralhou estas percepções e – ao mesmo tempo em que deslocava parte da humanidade africana para as Américas – favoreceu a percepção de uma nova dicotomia a partir da pigmentação ou não da pele. Muitas das comunidades tribais africanas foram então igualadas, no imaginário ocidental, em função do único aspecto que algumas delas pareciam ter em comum: uma certa semelhança na cor, quando postas em contraste com o padrão europeu.

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Tudo isto está intensamente impregnado de história, e o material humano sobre o qual se construiu esta história é certamente o mais rico em diversidade do planeta. Na verdade, nenhum outro continente abrange uma diversidade análoga à da África, e só para registrar um dos sintomas desta impressionante diversidade vale lembrar que um quarto das atuais línguas em uso no planeta concentram-se precisamente no continente africano. Falando em diversidade, aliás, à altura da chegada dos invasores europeus o continente também abrigava cinco das seis grandes divisões da humanidade. Povos caucasianos diversos (hamitas e semitas) habitavam o norte. Os povos negros estavam espalhados em toda a África ao sul do equador. A matriz asiática, misturada à negra, fazia-se representar através de uma singular população que habitava Madagascar, como conseqüência de uma migração indonésia que ocorrera muito tempo antes da chegada à África dos europeus. Pigmeus e Bosquímanos eram duas outras divisões bem singulares, sendo que estas só podiam ser encontradas mesmo na própria África. A rigor, apenas a sexta matriz que é apontada como uma das seis grandes divisões humanas – a dos aborígines australianos – não se fazia representar de algum modo no mosaico africano já nos primórdios da era moderna.
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No que se refere aos povos a que os europeus passaram a se referir como povos negros, tinha-se a noroeste da costa africana o circuito de civilização dos sudaneses, e mais ao sul o circuito de civilização dos bantos. Avançando mais para o centro seria possível encontrar os pigmeus, e no extremo sul da áfrica os bosquímanos, que já são ambos os povos oriundos de matrizes genéticas bem diferenciadas em relação aos povos negros relacionados aos circuitos civilizacionais sudanês e banto. Concentremo-nos por ora nos sudaneses e nos bantos.
Ainda que possam ser estabelecidas para a África Negra duas divisões mais gerais entre sudaneses e bantos, as etnias internas a estes dois grupos são de uma multi-diversidade que impressiona, não apenas no que se refere a caracteres físicos como, sobretudo, do ponto de vista cultural. Entre os sudaneses, nada mais distinto do que um uolof oriundo da região senegalesa em relação a um bambara ou a um mandinga do oeste sudanês. Difícil enquadrar em um único grupo dos “negros”, ou mesmo em um grupo negro apenas bipartido em sudaneses e bantos, etnias tão diversas como a dos zulus, somalis, ibos.
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As diferenças entre etnias negras, inclusive, não se afirmavam apenas através dos caracteres físicos herdados geneticamente. A cultura, como se sabe, faz parte do diferenciador étnico tanto quanto os índices biológicos. Lovejoy observa que as nações negro-africanas têm seus modos diferentes de cortar o cabelo e são reconhecidas por esta marca, que identifica a que etnia ou a que parte do território pertencem (Lovejoy, 2002: 9-39; Líbano et alli, 2003: 34). Do mesmo modo, cortes de cabelo, marcas faciais, tatuagens, vestimentas, objetos decorativos ... todos estes sinais, e uma infinidade de outros, eram muito visíveis e portadores de significado para os africanos, e também para os traficantes que precisavam lidar diretamente com os povos africanos.
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O discurso das diferenças étnicas era muito eloqüente no continente africano do início do período moderno, como ainda é hoje em certas regiões da África. Acomodar lado a lado, em uma única designação, algumas das mais diferentes etnias negras em um único grande grupo chamado de “raça negra” naturalmente só interessava à ponta colonial do tráfico, ao sistema de recepção e aclimatação do contingente de escravos africanos à América. Na África, os traficantes negreiros sempre souberam lidar com o jogo das etnias. Os conflitos inter-tribais eram freqüentemente ambíguos em seus resultados, mas, no fim das contas, conservar as divisões da humanidade negra na África interessava tanto quanto fomentar um novo tipo de unidade para a humanidade negra das colônias do Novo Mundo.
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As diferenças étnicas, deste modo, interessavam em muito aos traficantes que tinham de lidar na própria África com as operações de negociação, compra e exportação de escravos, mas já mesmo nos navios negreiros se empenhavam em separar estrategicamente os indivíduos pertencentes às mesmas etnias, e costumavam pôr a ferros os chamados “cabeças quentes” de modo a desmobilizar lideranças e se prevenir de revoltas, pois o perigo delas era constante. Já em solo americano, seja nas colônias portuguesas, espanholas ou inglesas, não mais interessavam estas mesmas etnias cuja contraposição alimentava o tráfico no seu nascedouro africano. Então era hora de misturar definitivamente os tipos étnicos, evitar a formação de grupos, fortalecer a idéia de que todos eram “negros”, uma raça talhada para o serviço escravo.

continua ...
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O presente texto foi extraído do artigo: "A construção social da cor. Desigualdade Escrava e Diferença Negra no processo de formação e superação do escravismo colonial", publicado na revista "Desigualdade e Diversidade" (Rio de Janeiro: PUC,n°3, jul/dez de 2008). http://ning.it/fOknYs
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O artigo foi baseado em um dos capítulos do livro A Construção Social da Cor (Petrópolis: Editora Vozes, 2009).