segunda-feira, 24 de maio de 2010

Igualdade, Desigualdade e Diferença: três conceitos em interação

(trecho do primeiro capítulo do livro
A Construção Social da Cor, p.19-26)


Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos se tornam os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Há certas palavras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudar a mudar o mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade, Desigualdade e Diferença são destas noções complexas que interagem entre si de diversas maneiras, e já tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio anterior* a idéia fundamental de que a confusão ou conversão de certas Diferenças em Desigualdades, e vice-versa, pode gerar problemas sociais específicos de maior ou menor gravidade. Antes de avançar na questão que conduzirá este ensaio – a da aplicação daquele referencial conceitual ao desenvolvimento da temática da Desigualdade Escrava e da Diferença Negra na formação histórica da sociedade brasileira – será oportuno recolocar alguns desenvolvimentos teóricos importantes .
Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favorecer uma maior compreensão sobre o que são, efetivamente, “diferenças” e “desigualdades”. Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e Americano, Idoso e Jovem, Cristão e Muçulmano, Operário e Camponês ... todos estes são exemplos bastante claros de “diferenças”. Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x ‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências1, ou das modalidades de ser: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou então dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto da nacionalidade, “ser brasileiro” ou “ser americano” são diferenças muito bem delineadas. Um indivíduo, em alguns casos extremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas – se pensarmos nos casos de “dupla nacionalidade” – mas não pode ser “meio brasileiro” e “meio americano”, a não ser que estejamos utilizando uma figura de retórica, e tampouco é possível encontrar uma situação intermediária entre “ser brasileiro” e “ser americano”. No universo de inúmeras nacionalidades possíveis, “ser brasileiro” e “ser americano”, enfim, não são realidades ou pólos que se opõem, mas sim diferenças que se confrontam, cada uma conservando seu próprio espaço de delimitação com referência a uma certa unidade geopolítica, a uma determinada identidade histórico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a um certo local de nascimento ou relações de filiação.
Já para aventar exemplos relativos às Desigualdades, podemos opor adjetivos como “Forte” e “Fraco”, “Instruído” e “Analfabeto”, “Rico” e “Pobre”, ou mesmo substantivos como “Liberdade” e “Escravidão”, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um aspecto ‘essencial’, mas sim a uma ‘circunstância’. Distintamente da oposição por ‘contrariedade’ que se estabelece entre Igualdade e Diferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordem das ‘contradições’. Não se considera um homem pobre ou rico, e tampouco muito instruído ou pouco instruído, senão por comparação com um outro homem. E entre o homem mais instruído e o menos instruído, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se for hipoteticamente possível imaginá-los, existem inúmeros graus (e não degraus) que podem ser percorridos. De igual maneira, o homem mais prestigiado pode passar rapidamente a ser socialmente execrado, e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora. Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a âmbitos relacionados às desigualdades: são aspectos circunstanciais e contraditórios, mutuamente reversíveis, somente compreensíveis do ponto de vista relativizador. As desigualdades, reforçaremos esta idéia, presidem em todos os casos possíveis a relações contraditórias, e não a meras oposições por contrariedade.
As contradições, este é o núcleo da questão, são sempre circunstanciais, enquanto os contrários necessariamente se opõem ao nível das modalidades de ser. Vale dizer, as contradições são geradas no interior de um processo, aparecem ou se explicitam em um determinado momento ou situação, e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os contrários não se misturam (amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distinção entre ‘contrários’ e ‘contradições’ traz importantes implicações, e disto dependerá toda a argumentação que desenvolveremos neste ensaio.
A implicação mais importante da radical circunstancialidade das desigualdades, por contraste em relação ao que ocorre com as diferenças que se afirmam como modalidades de ser, refere-se à alta reversibilidade que afeta ou pode afetar estas desigualdades.
Para melhor entendermos isto, será preciso considerar antes de mais nada que as diferenças são inerentes ao mundo humano – para não falar do mundo natural. De modo geral, a ocorrência de diferenças de toda a ordem não pode ser evitada através da ação humana. Vale ainda dizer que a ocorrência de Diferenças no mundo social está atrelada à própria diversidade inerente ao conjunto dos seres humanos, seja no que se refere a características pessoais (sexo, etnia, idade) seja no que se refere a questões externas (pertencimento por nascimento a esta ou àquela localidade, adesão a certa religião, ou então a cidadania vinculada a este ou àquele país, por exemplo).
O reconhecimento da inevitabilidade da ocorrência de diferenças reflete-se no fato de que são bem raros os projetos políticos que se proponham a lutar para eliminar certos tipos de diferenças como as sexuais, etárias ou profissionais (não estamos falando ainda da possibilidade de eliminar ou reduzir as desigualdades sexuais, etárias ou profissionais, o que seria uma questão de outra ordem). Com relação às diferenças étnicas, existem no limite os projetos de extermínio, que seguem no entanto sendo excepcionais. Neste extremo pode-se exemplificar com o projeto de eugenia proposto por dirigentes do Nazismo alemão, que preconizava abolir diferenças seja através do extermínio (de judeus, negros, ciganos, eslavos) ou mesmo através de experiências genéticas para atingir o tipo “ariano puro”, além de programas de esterilização de indivíduos com características não desejáveis. No Brasil da primeira metade do século XX, ideais eugênicos chegaram a encontrar abrigo no discurso médico através da liderança de Renato Kehl (1923). De todo o modo, a despeito das distopias e projetos de extermínio gerados por pesadelos totalitários, pode-se prever que sempre existirão homens e mulheres, diversas variações étnicas ou identitárias, indivíduos de variadas faixas etárias, bem como profissões as mais diversas. Mas pode-se sonhar que um dia estas diferenças serão tratadas socialmente com menos desigualdade. Por isto, as lutas sociais não se orientam em geral para eliminar as diferenças, mas sim para abolir ou minimizar as desigualdades.
Enquanto pensar Diferenças significa se render à própria diversidade humana, já abordar a questão da Desigualdade implica em considerar a multiplicidade de espaços em que esta pode ser avaliada. Avalia-se a Desigualdade no âmbito de determinados critérios ou de certos espaços de critérios: rendas, riquezas, liberdades, acesso a serviços ou a bens primários, capacidades. Indagar sobre a Desigualdade significa sempre recolocar uma nova pergunta: Desigualdade de quê? Em relação a quê? Conforme foi ressaltado, a Desigualdade é sempre circunstancial, seja porque esta estará necessariamente localizada social e historicamente dentro de um processo, seja porque estará obrigatoriamente situada dentro de um determinado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará (um determinado espaço teórico definidor de critérios, por assim dizer). Falar sobre Desigualdade implica em nos colocarmos em um ponto de vista, em um certo patamar ou espaço de reflexão (econômico, político, jurídico, social, e assim por diante). Mais ainda, implica em arbitrarmos ou estabelecermos critérios mais ou menos claros dentro de cada espaço potencial de reflexão.
Deve-se acrescentar, também, que qualquer noção de Desigualdade não pode ser senão circunstancial em parte porque estão sempre sujeitos a um incessante devir histórico os próprios critérios diante dos quais a Desigualdade poderia ser pressentida ou avaliada. As noções que afetam o mundo das hierarquias sociais e políticas transfiguram-se, entrelaçam-se e desentrelaçam-se de acordo com os processos históricos e sociais. Um exemplo será particularmente elucidativo. Nos tempos modernos, os três grandes âmbitos em que se pode estabelecer uma hierarquia social de qualquer tipo – portanto, os três âmbitos que regem o mundo da desigualdade humana – são a Riqueza, o Poder e o Prestígio (pode-se discutir, ainda, a Cultura, no sentido institucionalizado). Mas o que é falar hoje de Riqueza? É por certo falar também de Propriedade. Estas noções estão entrelaçadas na modernidade capitalista: a Riqueza encobre a Propriedade, abrangendo-a, mesmo que não se reduzindo a ela. Vale dizer, se toda a Riqueza, no mundo moderno, não se expressa necessariamente sob a forma de Propriedade ... não há como negar, por outro lado, que a Propriedade é na atualidade uma das formas mais poderosas de expressão da Riqueza (dito de outra forma, a Riqueza compra a Propriedade; é a forma de acesso, por excelência, à Propriedade).
Nem sempre foi assim. Na Antigüidade Helênica, por exemplo, Riqueza e Propriedade eram noções perfeitamente desentrelaçadas. Portanto, os critérios para a avaliação da Desigualdade deveriam considerar cada uma destas noções em separado (como espaços diferentes que integrariam a Desigualdade no sentido complexo). Na Grécia Antiga, a Propriedade significava que o indivíduo possuía concretamente um lugar no mundo (na polis), e que portanto pertencia ao mundo político com os conseqüentes direitos à Cidadania2 . Por isto, a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não substituía esta propriedade que era exclusiva dos cidadãos, e não lhe conferia obviamente um acesso ao mundo político.
Percebe-se aqui que o Poder entrelaçava-se então com a Propriedade, e ambos situavam-se em um espaço de conexões em separado da Riqueza. Além de Poder, Propriedade e Riqueza, havia um quarto critério gerador de espaços de desigualdade, que era o da Liberdade. No mundo da Escravidão Antiga, como no mundo da Escravidão Moderna (o Brasil ou a América Colonial, por exemplo), a Liberdade ou a Escravidão seriam noções óbvias para serem consideradas em uma avaliação mais sistemática da desigualdade humana.
Hoje a Liberdade de todos os indivíduos, como valor ideal e no sentido lato, é fundo comum para qualquer sociedade moderna que se declare democrática. Deixa, portanto, de ser um critério a partir do qual se possa pensar a desigualdade (mas é claro que podemos pensar na ‘liberdade de expressão’ ou na ‘liberdade de ir e vir’, conforme veremos depois). Por outro lado, não é preciso pontuar a Propriedade como critério hierárquico (como faziam os antigos gregos) já que na modernidade capitalista a Riqueza abrange a Propriedade. Este contraste entre o mundo antigo e o mundo moderno será suficiente, por ora, para registrar a circunstancialidade dos próprios critérios a partir dos quais se pode pensar a questão da desigualdade social.
De resto, o que obriga a falar em circunstâncias para as questões relacionadas à Desigualdade é o fato de que qualquer desigualdade que esteja sendo imposta a um grupo ou a um indivíduo está sujeita ela mesma à já mencionada circunstancialidade histórica, sendo em primeira ou última instância reversível. O grupo humano que está privado de determinados direitos pode reverter a sua situação através da ação social – sua e de outros. Pelo menos em tese, não existem desigualdades imobilizadas no mundo social. Enquanto isto, no mundo das diferenças teríamos situações mais francamente estáveis, ou mesmo, em alguns casos, parâmetros praticamente permanentes. Assim, na oposição biológica entre homem e mulher tem-se uma realidade contundente, ainda que esta possa se mostrar mais complexa através da ocorrência de outros diferenciais sexuais que não poderão ser discutidos nos limites deste ensaio. Da mesma forma, os seres humanos mostram-se todos sujeitos a atravessarem diferentes faixas etárias sem reversibilidade possível, e não há como lutar contra isto, mesmo que seja possível minimizar ou adiar os graduais efeitos da passagem do tempo sobre o corpo humano individual.
Enfim, para resumir esta primeira aproximação, pode-se dizer que em geral a Diferença se coloca no âmbito do “Ser”, enquanto a Desigualdade pertence ao mundo do “Estar” ou das Circunstâncias. Vermelho é diferente do Azul, mas um pintor pode dispensar um tratamento desigual ao uso destas duas cores em uma pintura, conforme enfatize mais uma ou outra. Para este exemplo, acabamos de falar em Desigualdade relativamente a um espaço de critérios específico, que é o da utilização quantitativa de cores diferentes pelo artista. Mas poderíamos falar de uma desigualdade entre duas cores no que se refere ao espaço simbólico que o artista atribuiu-lhe em uma determinada obra (mesmo que a cor valorizada não seja aquela que é mais utilizada conforme o critério quantitativo).
A metáfora das cores pode ajudar a compreender o universo social. Uma etnia pode marcar suas diferenças (físicas ou culturais) em relação a uma outra, mas ao mesmo tempo ocorre que uma determinada sociedade pode produzir igualdade ou desigualdade conforme se atribua a cada uma destas etnias maior ou menor espaço social ou político. As colisões também podem ocorrer aqui: é possível tratar um determinado grupo social com igualdade política, mas ocorrendo por outro lado uma nítida desigualdade econômica. De todo modo, é preciso ainda acrescentar que no mundo humano o objeto que reflete a diferença ou a desigualdade não é simplesmente como uma cor na paleta de um artista, mas sim um ser pensante, capaz de refletir sobre a diferença que o caracteriza ou sobre a desigualdade que o atinge. Esse aspecto é fundamental porque torna as Diferenças e Desigualdades no mundo humano muito mais complexas, já que sujeitas a auto-referências: as diferenças podem ser afirmadas ou rejeitadas (como traços de identidade individual ou coletiva), e as desigualdades podem ser contestadas ou sofridas passivamente.
Com vistas a explorarmos mais profundamente as implicações do fato de que a relação Igualdade x Desigualdade é da ordem das contradições, utilizaremos como exemplo significativo a oposição entre Pobreza e Riqueza. “Ser pobre” ou “ser rico” – desigualdades relacionadas ao plano econômico – são polarizações que trazem algumas implicações imediatas. Para começar, rigorosamente falando ninguém “é pobre” ou “é rico”; na verdade, o que seria mais adequado dizer é alguém “está pobre” ou “está rico”, pois a riqueza ou a pobreza são circunstâncias reversíveis, como já foi dito anteriormente. Além disso, “ser pobre” ou “ser rico” implica em uma relatividade. “É-se pobre” em relação a certo patamar de comparação: um indivíduo pode ser mais pobre em relação a outro indivíduo, e ao mesmo tempo mais rico em relação a um terceiro (contrariamente ao que ocorre mais habitualmente no plano das diferenças, já que um indivíduo não pode ser mais brasileiro do que outro, mais cristão, ou mais mulher). De resto, entre a “riqueza absoluta” e a “pobreza absoluta” – se quisermos postular hipoteticamente estas posições extremas relativas à desigualdade econômica – poderemos encontrar inúmeras nuances. Assim, se não há nuances intermediárias possíveis entre o brasileiro e o americano, entre o russo e o chinês, ou entre o mexicano e o indiano – todos diferenças referentes ao campo das nacionalidades – já entre o miserável e o milionário, marcadores tipicamente relacionados à desigualdade econômica, encontraremos todas as nuances possíveis.
Construiremos em seguida um esquema visual, de modo a melhor explicitar a distinção entre as desigualdades e diferenças. Trata-se de um quadrado semiótico no qual a noção de “Igualdade” relaciona-se horizontalmente com a “Diferença” (em uma coordenada dos contrários que se refere ao plano das essências), ao mesmo tempo em que se relaciona diagonalmente com a “Desigualdade” (em um eixo das contradições que se refere ao plano das circunstâncias). A indicação de bilateralidade no eixo contraditório da relação entre Igualdade e Desigualdade (uma linha com duas setas) indica, como já foi dito, que esses pólos são auto-reversíveis, e também que é possível um deslocamento em uma e outra direções ao longo do eixo da desigualdade. Já para a coordenada de contrariedade relacionada com os pólos Igualdade e Diferença não há de modo geral reversibilidade possível. Trocando em miúdos, as Desigualdades são reversíveis no sentido de que se referem a mudanças de estado; as Diferenças, de um modo geral, não.




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(esta é a primeira parte do 'capítulo I'
do livro A Construção Social da Cor)

sexta-feira, 7 de maio de 2010



Como foi construída a noção de “negro” (e “branco”) na sociedade brasileira? Qual a história desta construção desde os tempos de formação da sociedade colonial brasileira, e como seus posteriores desdobramentos prosseguiram tecendo a nossa história contemporânea? Que processos instituidores de desigualdades acompanharam a construção social destas diferenças, a começar pela introdução da escravidão de africanos no Brasil? Que formas de resistência e luta – e no interior de que práticas e discursos – surgiram desta história e para se contrapor a esta mesma história? Como se comporta a imensa variedade cultural e corporal do povo brasileiro nos quadros deste modo de perceber o mundo humano e contra o pano de fundo desta dicotomia estabelecida e imposta historicamente? O que ainda pode ser dito em termos de “raça negra”, sem que se cometa um anacronismo científico ao nível das mais recentes descobertas da antropologia e da bio-genética, e sem que, ao mesmo tempo, se veja afrontado um conceito sociologicamente bem estabelecido ao nível de processos formadores de identidade, tão caros a diversos dos movimentos sociais que têm tido um papel importante e relevante em sua luta contra desigualdades bem reais?

O presente livro constitui o terceiro ensaio da série Ensaios sobre a Desigualdade Humana. O volume apresenta como proposta central a de discutir como, a partir dos fundamentos do sistema colonial e da escravidão africana no Brasil, foi socialmente construída a idéia de uma raça negra por oposição à idéia de uma raça branca, ao mesmo tempo em que iam sendo desconstruídas no Brasil as antigas diferenças étnicas e tribais que existiam no continente africano. Deste modo, procura-se mostrar como a Construção Social da Cor, aqui entendida como esta complexa história da percepção social de diferenças relacionadas à cor da pele, foi utilizada a princípio como elemento fundamental no interior de um cruel sistema de domínio sobre toda uma parcela da humanidade. E como, em contrapartida, a mesma construção começou a ser incorporada aos mecanismos formadores de identidade, de modo a encaminhar a resistência contra as desigualdades sociais, já no período inaugurado pela Abolição da Escravatura.

Igualdade, Desigualdade e Diferença

Igualdade, Desigualdade e Diferença:
três conceitos em interação


Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos se tornam os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Há certas palavras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudar a mudar o mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade, Desigualdade e Diferença são destas noções complexas que interagem entre si de diversas maneiras, e já tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio anterior* a idéia fundamental de que a confusão ou conversão de certas Diferenças em Desigualdades, e vice-versa, pode gerar problemas sociais específicos de maior ou menor gravidade. Antes de avançar na questão que conduzirá este ensaio – a da aplicação daquele referencial conceitual ao desenvolvimento da temática da Desigualdade Escrava e da Diferença Negra na formação histórica da sociedade brasileira – será oportuno recolocar alguns desenvolvimentos teóricos importantes .
Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favorecer uma maior compreensão sobre o que são, efetivamente, “diferenças” e “desigualdades”. Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e Americano, Idoso e Jovem, Cristão e Muçulmano, Operário e Camponês ... todos estes são exemplos bastante claros de “diferenças”. Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x ‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências1, ou das modalidades de ser: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou então dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto da nacionalidade, “ser brasileiro” ou “ser americano” são diferenças muito bem delineadas. Um indivíduo, em alguns casos extremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas – se pensarmos nos casos de “dupla nacionalidade” – mas não pode ser “meio brasileiro” e “meio americano”, a não ser que estejamos utilizando uma figura de retórica, e tampouco é possível encontrar uma situação intermediária entre “ser brasileiro” e “ser americano”. No universo de inúmeras nacionalidades possíveis, “ser brasileiro” e “ser americano”, enfim, não são realidades ou pólos que se opõem, mas sim diferenças que se confrontam, cada uma conservando seu próprio espaço de delimitação com referência a uma certa unidade geopolítica, a uma determinada identidade histórico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a um certo local de nascimento ou relações de filiação.
Já para aventar exemplos relativos às Desigualdades, podemos opor adjetivos como “Forte” e “Fraco”, “Instruído” e “Analfabeto”, “Rico” e “Pobre”, ou mesmo substantivos como “Liberdade” e “Escravidão”, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um aspecto ‘essencial’, mas sim a uma ‘circunstância’. Distintamente da oposição por ‘contrariedade’ que se estabelece entre Igualdade e Diferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordem das ‘contradições’. Não se considera um homem pobre ou rico, e tampouco muito instruído ou pouco instruído, senão por comparação com um outro homem. E entre o homem mais instruído e o menos instruído, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se for hipoteticamente possível imaginá-los, existem inúmeros graus (e não degraus) que podem ser percorridos. De igual maneira, o homem mais prestigiado pode passar rapidamente a ser socialmente execrado, e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora. Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a âmbitos relacionados às desigualdades: são aspectos circunstanciais e contraditórios, mutuamente reversíveis, somente compreensíveis do ponto de vista relativizador. As desigualdades, reforçaremos esta idéia, presidem em todos os casos possíveis a relações contraditórias, e não a meras oposições por contrariedade.
As contradições, este é o núcleo da questão, são sempre circunstanciais, enquanto os contrários necessariamente se opõem ao nível das modalidades de ser. Vale dizer, as contradições são geradas no interior de um processo, aparecem ou se explicitam em um determinado momento ou situação, e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os contrários não se misturam (amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distinção entre ‘contrários’ e ‘contradições’ traz importantes implicações, e disto dependerá toda a argumentação que desenvolveremos neste ensaio.

(trecho do livro A Construção Social da Cor (2009, p.19-21))

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Para ler a continuação deste texto, que corresponde ao primeiro capítulo do livro "A Construção Social da Cor", acesse http://www.scribd.com/doc/31040741/A-Construcao-Social-da-Cor-capitulo-1

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Para ler sobre com maior amplitude de exemplos outros aspectos evocados neste texto, estendendo a discussão para outras instâncias além das discussões sobre etnia - como a sexualidade, a nacionalidade e a religiosidade - ver o artigo publicado em 2005 na revista Análise Social (Lisboa):

http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aso/n175/n175a05.pdf

Apresentação do Livro

Este Blog refere-se ao livro "A Construção Social da Cor", publicado pela Editora Vozes. Pretendemos abrir uma rede de diálogos sobre o livro, disponibilizando trechos do livro e motivando uma discussão sobre as questões abordadas pela obra.

As referências do livro são as seguintes:

título: "A Construção Social da Cor - desigualdade e diferença na formação da sociedade brasileira".
autor: José D'Assunção Barros
editora: Editora Vozes

O livro aborda o período que vai da formação do Escravismo Colonial até a Abolição da Escravatura, e segue depois analisando alguns desdobramentos contemporâneos (período da República) relativos às desigualdades e lutas contra as desigualdades no período escravocrata. A obra procura desenvolver vários assuntos, como a distinção entre a Escravidão Antiga e a Escravidão Moderna, já racializada e inserida no tráfico atlântico, e também a descaracterização de identidades ancestrais africanas em favor de uma Identidade Negra, seja para a montagem do sistema escravocrata, seja no que concerne às posteriores as lutas sociais contra este mesmo sistema. O livro parte de uma distinção conceitual entre “Desigualdade” e “Diferença”, e procura examinar como estas noções podem se interpenetrar para produzir sistemas de dominação.


Para quem estiver interessado em conhecer algo do livro "A Construção Social da Cor", estamos disponibilizando alguns capítulos do livro por e-mail. Podem pedir nos coments, ou pelo e-mail jose.d.assun@globomail.com