sábado, 22 de janeiro de 2011

Das diferenças tribais africanas às diferenças escravas do Novo Mundo

Em texto anteriormente postado neste blog (http://ning.it/f3eymc), comentávamos o fato de que, na África pré-colonial (e mesmo ainda hoje), os africanos percebiam diferenciações intertribais que eram muito claras para eles, gerando padrões de solidariedade e hostilidade, bem como sensações de identidade e alteridade. Diferenciações de altura, de espessura labial, de contorno do rosto ou de tipo de cabelo podiam ser tão ou mais importantes para compor a distinção de etnias do que o tom da pele – sem contar que as várias sociedades tribais acrescentavam a estas diferenças naturais outras de ordem cultural, como um corte de cabelo, o uso de brincos, a utilização de determinada indumentária, e assim por diante. A empresa do tráfico negreiro embaralhou estas percepções e – ao mesmo tempo em que deslocava parte da humanidade africana para as Américas – favoreceu a percepção de uma nova dicotomia a partir da pigmentação ou não da pele. Muitas das comunidades tribais africanas foram então igualadas, no imaginário ocidental, em função do único aspecto que algumas delas pareciam ter em comum: uma certa semelhança na cor, quando postas em contraste com o padrão europeu.


Tudo isto está intensamente impregnado de história, e o material humano sobre o qual se construiu esta história é certamente o mais rico em diversidade do planeta. Na verdade, nenhum outro continente abrange diversidade análoga à da África, e só para registrar um dos sintomas desta impressionante diversidade vale lembrar que um quarto das atuais línguas em uso no planeta concentra-se precisamente no continente africano. Falando em diversidade, aliás, à altura da chegada dos invasores europeus, o continente também abrigava cinco das seis grandes divisões da humanidade. Povos caucasianos diversos (hamitas e semitas) habitavam o norte. Os povos negros estavam espalhados em toda a África ao sul do equador. A matriz asiática, misturada à negra, fazia-se representar através de uma singular população que habitava Madagascar, como conseqüência de uma migração indonésia que ocorrera muito tempo antes da chegada à África dos europeus. Pigmeus e Bosquímanos eram duas outras divisões bem singulares, sendo que estas só podiam ser encontradas mesmo na própria África. A rigor, apenas a sexta matriz que é apontada como uma das seis grandes divisões humanas – a dos aborígines australianos – não se fazia representar de algum modo no mosaico africano já nos primórdios da era moderna.

No que se refere aos povos a que os europeus passaram a se referir como povos negros, tinha-se à noroeste da costa africana o circuito de civilização dos sudaneses, e mais ao sul o circuito de civilização dos bantos. Avançando mais para o centro seria possível encontrar os pigmeus, e no extremo sul da áfrica os bosquímanos, que já são povos oriundos de matrizes genéticas bem diferenciadas em relação aos povos negros relacionados aos circuitos civilizacionais sudanês e banto. Concentremo-nos por ora nos sudaneses e nos bantos. Ainda que possam ser estabelecidas para a África Negra duas divisões mais gerais entre sudaneses e bantos, as etnias internas a estes dois grupos são de uma multi-diversidade que impressiona, não apenas no que se refere a caracteres físicos como também do ponto de vista cultural. Entre os sudaneses, nada mais distinto do que um uolof oriundo da região senegalesa em relação a um bambara ou a um mandinga do oeste sudanês. Difícil enquadrar em um único grupo dos “negros”, ou mesmo em um grupo negro apenas bipartido em sudaneses e bantos, etnias tão diversas como a dos zulus, somalis, ibos.

As diferenças entre etnias, inclusive, não se afirmavam apenas através de caracteres físicos herdados geneticamente. A cultura, como se sabe, faz parte do diferenciador étnico tanto quanto os índices biológicos. Lovejoy observa que as nações negro-africanas têm seus modos diferentes de cortar o cabelo e são reconhecidas por esta marca, que identifica a que etnia ou a que parte do território pertencem (Lovejoy, 2002: 9-39; Líbano et alli, 2003: 34). Do mesmo modo, cortes de cabelo, marcas faciais, tatuagens, vestimentas, objetos decorativos ... todos estes sinais, e uma infinidade de outros, eram muito visíveis e portadores de significado para os africanos, e também para os traficantes que precisavam lidar diretamente com os povos africanos.

O discurso das diferenças étnicas era muito eloqüente no continente africano do início do período moderno, como ainda é hoje em certas regiões da África. Acomodar lado a lado, em uma única designação, algumas das mais diferentes etnias negras, convertendo todas a um único grande grupo chamado de “raça negra”, constituía obviamente uma operação que só interessava à ponta colonial do tráfico, ao sistema de recepção e aclimatação do contingente de escravos africanos à América. Na África, os traficantes negreiros sempre souberam lidar com o jogo das etnias. Os conflitos intertribais eram freqüentemente ambíguos em seus resultados; mas, no fim das contas, conservar as divisões da humanidade negra na África interessava tanto quanto fomentar um novo tipo de unidade para a humanidade negra das colônias do Novo Mundo.

As diferenças étnicas, deste modo, interessavam em muito aos traficantes, que tinham de lidar na própria África com as operações de negociação, compra e exportação de escravos. Mas, já nos navios negreiros, eles logos se empenhavam em separar estrategicamente os indivíduos pertencentes às mesmas etnias, e costumavam pôr a ferros os chamados “cabeças quentes”, de modo a desmobilizar lideranças e se prevenir de revoltas, pois o perigo delas era constante. Já em solo americano, seja nas colônias portuguesas, espanholas ou americanas, não mais interessavam estas mesmas etnias cuja contraposição alimentava o tráfico no seu nascedouro africano. Então era hora de misturar definitivamente os tipos étnicos, evitar a formação de grupos, fortalecer a idéia de que todos eram “negros”, uma raça talhada para o serviço escravo.

Por questões práticas – em parte relacionadas a necessidades de censo e controle, mas também em parte motivadas pelos interesses de conhecer mais a fundo a massa humana escravizada no que se refere a potencialidades para os novos trabalhos que lhe seriam impostos – os administradores coloniais do trabalho escravo também tiveram de recorrer à moldagem de novas diferenças negras, em nada ou muito pouco relacionadas com as antigas etnias africanas. Precisavam saber, por exemplo, quais tipos de escravos eram mais adaptáveis ao trabalho na agricultura, ao trabalho nas minas, aos serviços domésticos, e assim por diante. Ajudaria, para os seus propósitos, conhecer não tanto as etnias originais dos negros, mas o tipo de trabalho com os quais estiveram acostumados na África, o tipo de vegetação e clima com os quais lidavam ancestralmente, e talvez conhecer algo do seu potencial de rebelião ou fuga.

Cedo surgiram algumas classificações geográficas que logo foram coladas à identificação dos negros, diferenciando-os uns dos outros, particularmente porque estas informações relacionadas aos ambientes de origem podiam ajudar a melhor entender as potencialidades dos vários grupos de negros com relação ao ambiente. Por outro lado, havia também uma contabilidade a ser registrada e uma avaliação de qualidade, por assim dizer, que permitisse identificar as potencialidades dos vários tipos de negros em relação aos diversos circuitos negreiros. Possivelmente essas combinações de fatores fez com que prevalecesse uma diferenciação dos negros relacionadas aos seus circuitos de exportação, o que implica também em uma geografia da diferença.

Os cabindas, por exemplo, aparecem como uma nova classificação negra. Na verdade, não correspondem a nada mais nada menos do que aos negros que eram exportados pelo porto da Cabinda, situado logo ao norte do Rio Zaire. Obviamente que esta categorização oculta a etnia a que pertence cada indivíduo, e pela classificação proposta não podemos saber se um negro chamado de cabinda pertencia a uma etnia como a dos nsundis ou a outra como a dos tekes, para dar exemplo de duas das várias etnias em que se especializava o porto de Cabinda em função da sua posição na geografia do tráfico.

Os congos, para dar outro exemplo, constituíam um grupo de apreensão difícil com relação a características físicas e étnicas, uma vez que por esta designação seria designado qualquer indivíduo exportado pela vasta rede comercial que se desenvolvia em torno do curso do rio Zaire (Karash, 2000: 54), o que implicava na confusão de centenas de grupos étnicos no interior de uma única designação. O mesmo pode ser dito dos angolanos e benguelas, que se referem a regiões geográfico-administrativas surgidas, no século VIII, da partilha da áfrica pelos países europeus envolvidos no tráfico. Diante da classificação de um negro como benguela, já na América Portuguesa, como saber se estamos diante de um mbundo, um mbwela, ou outra etnia?

Tanto quanto a categoria gigante de “negro” – engolidora de todas as diferença étnicas – as categorias embaralhadas a partir dos portos de exportação ou dos circuitos de comércio e apresamento dão o seu quinhão para a dissolução das etnias negras de origem no novo mundo. Os filhos de escravos verão se perder no horizonte a noção de que são iorubas, geges, ambacas, quissamas, rebolos, mbundas, mbwelas, tekes, nsundis, ou tantas outras etnias a serem afirmadas como diferenças culturais.

O processo de novas diferenciações a partir da indiferenciação de todas etnias negras na categoria “raça negra” apresentou ainda outras possibilidades, surgidas da própria vida colonial. Assim, outras diferenças criadas já na colônia são as de crioulo – o homem de pele identificada como negra nascido no Brasil – e o pardo, produto da mestiçagem de africanos com brancos europeus ou descendentes de europeus já enraizados na colônia. Definir como pardo – categoria que o indivíduo não raro ostentava com certo orgulho para distanciar-se mais da idéia de escravidão associada aos negros – implica em reintroduzir mais uma vez na diferença a ‘desigualdade’, através de uma realidade que se arrastará também para o mundo dos libertos.

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Veja a continuação deste artigo, e também o seu início, em http://ning.it/fPSHNx
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Referência do artigo: BARROS, José D'Assunção. “A Construção Social da Cor e a ‘Desconstrução da Diferença Escrava’ – reflexões sobre as idéias escravistas no Brasil Colonial” in Opsis. Universidade Federal de Goiás,campus de Catalão. Vol.10, n°1, 2010.

Para um estudo mais aprofundado, ver o livro: BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: Editora Vozes, 2009 [http://ning.it/dVUGqt].

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Obras Citadas:


BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: editora Vozes, 2009.
KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LOVEJOY, Paul. Identidade e Miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Garôo Baquaqua para as Américas. Afro-Ásia – revista da UFBA/CEAO, Salvador, n° 27, p.9-39, jan/jun. 2002.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano; FARIAS, J. B.; GOMES, Flávio dos Santos. No Labirinto das nações – africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

A Construção Social da Cor e a 'Desconstrução da Diferença Escrava'

A “Escravidão”, a mais cruel forma de desigualdade já inventada pelo homem, apresenta já um longo percurso na história das sociedades humanas. O que a justificou nestas diversas sociedades, e como os seus contemporâneos a viram, de uma maneira conceitual e prática? O mais denso tratado dificilmente poderia abranger amplamente esta questão relativamente à extensão de espacialidades e temporalidades a serem consideradas, ou mesmo no que se refere à amplitude da discussão filosófica e política que têm se desenvolvido em torno do tema. Em contrapartida, renovar esta discussão, inclusive propondo novos vieses teóricos, é sempre uma necessidade imperativa. O presente artigo pretende examinar a questão da Escravidão considerando uma espacialidade e temporalidade definidas – a do Brasil Escravocrata – de modo a abordar a questão de uma perspectiva conceitual que procurará refletir sobre a seguinte questão: foi a escravidão percebida conceitualmente como Desigualdade ou Diferença no período moderno, e neste lugar específico? Quais as implicações de se elaborar uma leitura que transforma em Diferença este fenômeno que, à luz da reflexão que desenvolveremos a seguir, deve ser compreendido como Desigualdade – na verdade como a “desigualdade radical” por excelência?


O quadro conceitual proposto já foi apresentado em um artigo postado neste blog (http://ning.it/hm0Vxb), no qual nos empenhamos em buscar uma compreensão em maior profundidade sobre o que é “Desigualdade” e o que é “Diferença”, e de que formas estas duas noções se opõem à noção de “Igualdade”. Na ocasião, fizemos notar que Igualdade, Desigualdade e Diferença são noções complexas que interagem entre si de diversas maneiras, e que não raro a conversão de certas Diferenças em Desigualdades, ou vice-versa, pode gerar problemas sociais específicos que merecem uma reflexão mais acurada. Vamos lembrar mais uma vez que a noção de Igualdade contrasta simultaneamente com estas duas outras noções. Por um lado Igualdade opõe-se por contraiedade a Diferença, mas por outro lado se contradita com Desigualdade. O ponto chave daquela discussão teórica estava em distinguir com clareza os dois tipos de relações aí envolvidos: a contrariedade e a contraditoriedade.

Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e Americano, Velho e Novo, Cristão e Muçulmano, Operário e Camponês são exemplos bastante claros de “diferenças”. Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x ‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em determinado aspecto) ou então dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto da nacionalidade, “ser brasileiro” ou “ser americano” são diferenças muito bem delineadas. Um indivíduo, em casos extremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas – se pensarmos nos casos de “dupla nacionalidade” – mas não pode ser “meio brasileiro” e “meio americano”, a não ser que estejamos utilizando uma figura de retórica, e tampouco é possível encontrar uma situação intermediária entre “ser brasileiro” e “ser americano”. No universo de inúmeras nacionalidades possíveis, “ser brasileiro” e “ser americano” não são realidades ou pólos que se opõem, mas sim diferenças que se confrontam, cada qual conservando seu próprio espaço de delimitação com referência a uma unidade geopolítica específica, a determinada identidade histórico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a certo local de nascimento ou relações de filiação.

Já para aventar exemplos relativos às Desigualdades, podemos opor adjetivos como “Forte” e “Fraco”, “Instruído” e “Analfabeto”, “Rico” e “Pobre”, ou mesmo substantivos como “Liberdade” e “Escravidão”, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um aspecto ‘essencial’, mas sim a uma ‘circunstância’. Distintamente da oposição por ‘contrariedade’ que se estabelece entre Igualdade e Diferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordem das ‘contradições’. Bem entendido, enquanto os contrários se opõem ou se confrontam ao nível das essências, já as contradições são sempre circunstanciais: são geradas no interior de um processo, têm uma história, aparecem em determinado momento ou situação, e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Já os pares contrários não se misturam efetivamente (amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e deste modo fixam claramente o abismo de sua contrariedade.

Para esclarecer o que é Desigualdade pode ser evocado o tipo de oposição que se estabelece pela oposição entre Pobreza e Riqueza. “Ser pobre” ou “ser rico” – desigualdades relacionadas ao plano econômico – são polarizações que trazem algumas implicações. Para começar, rigorosamente falando ninguém “é pobre” ou “é rico”; na verdade o que seria mais adequado dizer é que alguém “está pobre” ou “está rico”, pois a riqueza ou a pobreza são circunstâncias reversíveis.

Além disso, “ser pobre” ou “ser rico” implica em uma relatividade. “É-se pobre” em relação a certo patamar de comparação: um indivíduo pode ser mais pobre em relação a outro indivíduo, e, ao mesmo tempo, mais rico em relação a um terceiro (contrariamente ao que ocorre mais habitualmente no plano das diferenças, já que um indivíduo não pode ser mais brasileiro do que outro, mais cristão, ou mais mulher). De resto, entre a “riqueza absoluta” e a “pobreza absoluta” – se quisermos postular hipoteticamente estas posições extremas relativas à desigualdade econômica – poderemos encontrar inúmeras nuances. Assim, se não havia nuances intermediárias entre o brasileiro e o americano, entre o russo e o chinês, ou entre o mexicano e o indiano – todos diferenças referentes ao campo das nacionalidades – já entre o miserável e o milionário, marcadores tipicamente relacionados à desigualdade econômica, encontraremos todas as nuances possíveis.

Para esclarecimentos adicionais em relação ao esquema conceitual proposto, remetemos ao artigo "Igualdade, Desigualdade e Diferença - em torno de três noções" (Análise Social, 2005, http://ning.it/gozcc2). Neste momento, iremos direto ao ponto. A Escravidão, conforme postulamos, é a desigualdade radical por excelência. Embora o Escravo seja certamente o "desigual" que tudo perdeu - incluindo seus direitos de ir e vir e de lidar livremente com a sua própria força de trabalho - não se pode dizer que alguém "é escravo". Na verdade, os cativos aprisionados na África e violentados pela imposição do trabalho compulsório nas Américas do período moderno - em que pese o cruel sistema de dominação ao qual estavam sujeitos - "estavam escravos". Entender a Escravidão como "desigualdade radical", e não como diferença, foi questão muito importante para aqueles que desejavam o fim do escravismo, ou mesmo para aqueles que preconizavam formas menos cruéis de escravismo. Os abolicionistas, por exemplo, sempre insistiram, pertinentemente, em rediscutir a noção de Escravidão como desigualdade, e não como diferença, pois é muito mais fácil lutar para suprimir uma desigualdade do que para eliminar uma diferença.

Há um outro aspecto importante a ser notado para uma compreensão adequada do processo de implantação do escravismo racializado no mundo moderno. Devemos entender também que não apenas as desigualdades são históricas; também as diferenças podem sê-lo. As diferenças ditas "raciais" são construções históricas; não são dados da natureza. Assim, devemos compreender inicialmente que, entre os séculos XVI e XIX, os “negros” não se viam na África em absoluto como “negros”. “Negro” foi na verdade uma construção “branca” – já que os povos africanos enxergavam a si mesmos como pertencentes a grupos étnicos bem diferenciados e em geral reciprocamente hostis. Na verdade, o aspecto diferencial “Negro” foi grosso modo construído no Ocidente Europeu a partir da imposição da superação de diversas diferenciações que existiam (e existem até hoje) nas sociedades tribais africanas.

Dito de outro modo, a diferença “negro” foi construída a partir da igualização (ou da indiferenciação, seria melhor dizer) de uma série de outras diferenças étnicas que demarcavam as identidades locais no continente africano, sendo importante ressaltar que isto não ocorreu repentinamente, mas sim no decurso de um processo de quatro séculos que envolveu a implantação, realização e superação do escravismo – um processo que a princípio “mescla, sem as confundir, as etnias, tribos e clãs” (Mattoso, 1982: 23), mas que, ao mesmo tempo, suprime gradualmente todas estas diferenças na consolidação da representação de “Negro”. Para entender as bases iniciais deste complexo processo, será importante evocar a própria diversidade afro-negra à época que precede a implantação do tráfico negreiro.

Além disto, devemos compreender aqui a construção histórica de uma outra diferença: a construção imaginária de um continente chamado África, no início do período moderno, como se este constituísse uma unidade, e como se fosse tão clara a sua demarcação entre a Europa e a Ásia. Se a idéia de “negro” foi construída por supressão ou minimização das diferenças tribais que existiam na chamada África sub-saariana, é preciso salientar que os negros africanos tampouco se viam como “africanos” no período de implantação do mercado escravista atlântico. A “África”, pode-se dizer, foi também uma construção da “Europa”. O norte, o centro, o sul, a banda oriental, o litoral atlântico, para apenas falar das macro-regiões da África, eram pressentidas pelos povos que as habitavam como regiões geográficas e culturais bem diferenciadas. Quem pela primeira vez avaliou estes povos a partir de uma identidade étnica e continental – enquadrada em um lugar único – foi o próprio homem “branco” europeu, já que esta questão não se colocava então para os “negros africanos” da época.

Por fim, a adaptação do próprio conceito de “Escravo”, transformando-o simultaneamente na base de um determinado sistema de produção e, sobretudo, em peça central definidora de um comércio extraordinariamente rendoso nos moldes modernos foi também uma construção européia. Bem entendido, a Escravidão era uma forma de Desigualdade que já vinha existindo desde a Antigüidade, mas de modo geral apresentava outras singularidades. Em boa parte dos casos, a Escravidão Antiga apresentava-se como um produto da Guerra: o escravo podia ser, por exemplo, um homem livre que fora vencido e capturado belicamente. Também em diversas sociedades da Antiguidade apresentava-se, ao lado da escravização surgida da guerra, o caso menos freqüente da escravidão por dívidas, novamente uma circunstância, e já desde a Mesopotâmia comprovam-se ainda os casos de escravização de crianças abandonadas e da venda de familiares como escravos.

Assim como na Antigüidade, a escravidão sempre existira na África. Só que na realidade africana pré-colonial tinha-se uma escravidão de importância periférica, e que além disto assumia conotações diversas que serão discutidas mais adiante. A contribuição do homem “branco” europeu para esta triste prática hoje oficialmente abolida foi introduzir a Escravidão, a partir do século XVI, em um comércio trans-oceânico de âmbito mundial, e também convertê-la em peça-chave dos sistemas econômicos coloniais até sua abolição nos vários países da América[1]. Para isto, o traficante europeu precisou interagir com a “ponta negra” do tráfico – da qual participavam os chefes africanos das etnias litorâneas, que organizavam nos séculos XVII e XVIII guerras e expedições de captura para obter no interior africano homens de etnias várias para serem vendidos como escravos.

Enquanto as formas de escravidão que eram até então conhecidas contrastam com a Escravidão Moderna por terem se apresentado menos extensas, menos comerciais e mais heterogêneas (o escravo na Grécia ou na Roma Antiga podia vir de procedências diversas), na instalação do sistema escravista colonial estaremos diante de um novo sistema de escravidão que abarca uma extensão oceânica, apresenta muito mais intensidade comercial e vai se nutrir de escravos trazidos exclusivamente da África (Blackburn, 2002: 19) – vinculando esta origem, ela mesma uma construção que desconsidera as origens locais, a uma diferença socialmente selecionada que será a da cor da pele.

Neste novo contexto, se antes a Escravidão apresentava-se amiúde como um subproduto da Guerra, agora o objetivo de capturar escravos é que passaria a produzir a Guerra. O Escravo passou a ser um produto tão valorizado na nova realidade econômica que os próprios grupos tribais africanos organizavam expedições para capturar escravos para depois vender aos europeus[2]. Ocorreu mesmo que estados e reinos africanos que eram estáveis antes da chegada dos europeus desaparecessem, particularmente a partir de meados do século XVII, para dar lugar a novos estados “nascidos do tráfico e vivendo dele” (Mattoso, 1982: 27). A esta questão voltaremos mais adiante, pois ela nos forçará a examinar os vários modelos de escravidão que já existiam na África pré-colonial do ponto de vista de sua relação com os conceitos de Desigualdade e Diferença.

Por ora, registremos que a desconstrução da diversidade de etnias negras e das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro de uma grande raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamente homogêneo – e a simultânea visão desta parte da humanidade como “inferior”, ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano como lugar exterior à “civilização” – tudo isto, juntamente com uma nova noção de “escravo”, constituiu o fundo ideológico da montagem do sistema escravista no Brasil. Desigualdades e Diferenças várias, neste caso construídas historicamente, entrelaçaram-se para dar apoio a um dos mais cruéis sistemas de dominação que a História conheceu.

Os primeiros portugueses que procederam à montagem do sistema escravista no Brasil estavam cientes da diversidade africana, e portanto das possibilidades de afirmação de diferenças a partir desta diversidade[3]. Mas eram diferenças que, no caso, não lhes interessavam. Motivar as rivalidades étnicas no próprio continente africano era extremamente interessante para os traficantes negreiros, já que era da massa de vencidos nas guerras e conflitos inter-tribais que os traficantes negreiros obtinham os indivíduos que seriam transformados em escravos. Mas permitir que estas identidades étnicas se fortalecessem já nas colônias onde os africanos seriam submetidos à escravidão, isso já era particularmente perigoso. Por isto os compradores de escravos para a empresa agrícola ou para as atividades urbanas costumavam separar estrategicamente os indivíduos provenientes de uma mesma etnia e região cultural, misturando escravos de diferentes procedências – tudo para evitar que fossem revividos certos padrões de identidades locais africanas que não estavam assim tão distantes (e, conseqüentemente, prevenir potenciais revoltas). Construir a idéia do “negro”, desta nova noção que transcende todas as etnias, que as supera ou mesmo as cancela, era o procedimento-chave. Por outro lado, se para fins de censo e controle era preciso classificar os negros despejados pelo tráfico no Brasil, também se operava a construção de novas diferenças, muito pouco coincidentes com as realidades étnicas originais. Incorporava-se à identidade do negro uma procedência geográfica que via de regra relacionava-se aos portos africanos de tráfico que os haviam exportado para o Brasil, independente de sua verdadeira origem. Cabindas, minas e congos, por exemplo, eram designações que tinham origem em portos ou circuitos de tráfico específicos. Angolanos, congoleses e benguelas eram referências a circuitos geográficos nos quais apareciam embaralhadas muitas etnias.

À parte as classificações impostas por necessidades práticas, o delineamento de uma dimensão racial “negra” por oposição ao “branco” firmou-se mesmo como a peça-chave de um novo constructo ideológico. Com isto, o negro no Brasil e no resto da América passou a ser visto como uma realidade única e monolítica, e com o tempo foi levado a enxergar a si mesmo também desta maneira. Perdidos os antigos padrões de identidade que existiam na África, o negro afro-brasileiro sentiu-se compelido a iniciar a aventura de construir para si uma nova identidade cultural, adaptando-a à própria cultura colonial. Com isto iriam surgir novos padrões religiosos, diversificadas alternativas sincréticas, uma nova arte e uma nova música, e tantas outras contribuições que já não são propriamente africanas. Daí que não se pode falar propriamente de uma componente cultural africana de nossa sociedade, mas sim de uma componente afro-brasileira, inauguradora de novas especificidades.

Conforme se vê, ocorreu neste processo histórico o entrelaçamento de uma noção que habita ou deveria habitar o plano da Desigualdade Social (a noção de Escravo) com estas duas diferenças culturais que foram a Negritude e o pertencimento africano (ou pelo menos a procedência ou a ancestralidade africana). Obviamente que, mais tarde, estas noções foram se desentrelaçando. Já mencionamos o fato de que fez parte da montagem ideológica do sistema Colonial o deslocamento da idéia de Escravidão, que passou do eixo circunstancial e contraditório da Desigualdade para a coordenada essencial dos contrários que pontuam as Diferenças. E que, a seu tempo, as idéias abolicionistas passaram novamente a discutir a Escravidão como Desigualdade, e não mais como Diferença, marcando o retorno discursivo de uma noção que já havia pertencido ao plano da Desigualdade. Este processo de releitura das noções que haviam dado suporte ao sistema colonial, e o seu redesligamento umas das outras, mostra como as Desigualdades e Diferenças estão sujeitas a deslocamentos que correspondem a transformações sociais mais profundas que se processam na sociedade.


[No próximo post deste blog, daremos continuidade a este artigo, discutindo a passagem das "diferenças intertribais" que existiam na África às diferenças escravas criadas pelo tráfico. Para acesso ao artigo completo, ver http://ning.it/fPSHNx]

Referência do artigo: BARROS, José D'Assunção. “A Construção Social da Cor e a ‘Desconstrução da Diferença Escrava’ – reflexões sobre as idéias escravistas no Brasil Colonial” in Opsis. Universidade Federal de Goiás,campus de Catalão. Vol.10, n°1, 2010.

Para um estudo mais aprofundado, ver o livro: BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: Editora Vozes, 2009 [http://ning.it/dVUGqt].


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Notas:

[1] Conforme assinala Kátia Mattoso, “somente então um certo tipo de escravidão africana nasce do tráfico e para este, visto que cumpre alimentá-la de sangue sempre renovado” (Mattoso, 1982: p.25).

[2] A organização de expedições de pirataria para aquisição de escravos não era desconhecida na Antiguidade, e certos povos – como os fenícios, etruscos, cretenses, etolios, ilírios, cilícios – surgiam grupos que “se especializavam em raptar pessoas e transportá-las em seus barcos para vendê-las em portos francos, como o era a Ilha de Delos depois de 168 aC” (CARDOSO, 1987: 41). Mas com o modelo de Escravidão introduzido pelos europeus do início do mundo moderno isso passa a ocorrer em larga escala, tornando-se a regra, e inserindo-se em um comércio trans-atlântico. É disto que aqui tratamos para considerar as singularidades da escravidão moderna. Já na Antiguidade grega o que ocorria é que, em geral, “os exércitos eram seguidos de mercadores de escravos que compravam em massa os prisioneiros e depois os encaminhavam aos pontos de venda” (id.ibid, p.41) Ou seja, nestes casos surgia um comércio de escravos em função da guerra, e não o contrário.

[3] Na verdade, as diversidades tribais existem ainda hoje na África, e os atuais conflitos entre hutus e tutsis em Ruanda são produtos da reunião em um mesmo país de tribos cujas mútuas hostilizações vinham crescendo desde o período colonial / Sobre a diversidade africana ver o ensaio de Davidson BASIL (1981). Sobre os conflitos entre tútsis e hútus que adquiriram sua expressão mais sangrenta em 1994, ver HATZFELD (2005).

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Obras citadas:

BARROS, José D'Assunção. "Igualdade, Desigualdade e Diferença - em torno de três noções". Análise Social (Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa). n.175, volume 11, verão de 2005, p.345-366.
BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: editora Vozes, 2009.
HATZFELD, Jean. Uma Temporada de Facões – relatos do genocídio em Ruanda. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [original: Paris: 2003].
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Trabalho Compulsório na Antiguidade, Rio de Janeiro: Graal, 1987.
BASIL, Davidson. Os africanos: uma introdução à sua história cultural. Lisboa: Ed. 70, 1981.