sábado, 22 de janeiro de 2011

Das diferenças tribais africanas às diferenças escravas do Novo Mundo

Em texto anteriormente postado neste blog (http://ning.it/f3eymc), comentávamos o fato de que, na África pré-colonial (e mesmo ainda hoje), os africanos percebiam diferenciações intertribais que eram muito claras para eles, gerando padrões de solidariedade e hostilidade, bem como sensações de identidade e alteridade. Diferenciações de altura, de espessura labial, de contorno do rosto ou de tipo de cabelo podiam ser tão ou mais importantes para compor a distinção de etnias do que o tom da pele – sem contar que as várias sociedades tribais acrescentavam a estas diferenças naturais outras de ordem cultural, como um corte de cabelo, o uso de brincos, a utilização de determinada indumentária, e assim por diante. A empresa do tráfico negreiro embaralhou estas percepções e – ao mesmo tempo em que deslocava parte da humanidade africana para as Américas – favoreceu a percepção de uma nova dicotomia a partir da pigmentação ou não da pele. Muitas das comunidades tribais africanas foram então igualadas, no imaginário ocidental, em função do único aspecto que algumas delas pareciam ter em comum: uma certa semelhança na cor, quando postas em contraste com o padrão europeu.


Tudo isto está intensamente impregnado de história, e o material humano sobre o qual se construiu esta história é certamente o mais rico em diversidade do planeta. Na verdade, nenhum outro continente abrange diversidade análoga à da África, e só para registrar um dos sintomas desta impressionante diversidade vale lembrar que um quarto das atuais línguas em uso no planeta concentra-se precisamente no continente africano. Falando em diversidade, aliás, à altura da chegada dos invasores europeus, o continente também abrigava cinco das seis grandes divisões da humanidade. Povos caucasianos diversos (hamitas e semitas) habitavam o norte. Os povos negros estavam espalhados em toda a África ao sul do equador. A matriz asiática, misturada à negra, fazia-se representar através de uma singular população que habitava Madagascar, como conseqüência de uma migração indonésia que ocorrera muito tempo antes da chegada à África dos europeus. Pigmeus e Bosquímanos eram duas outras divisões bem singulares, sendo que estas só podiam ser encontradas mesmo na própria África. A rigor, apenas a sexta matriz que é apontada como uma das seis grandes divisões humanas – a dos aborígines australianos – não se fazia representar de algum modo no mosaico africano já nos primórdios da era moderna.

No que se refere aos povos a que os europeus passaram a se referir como povos negros, tinha-se à noroeste da costa africana o circuito de civilização dos sudaneses, e mais ao sul o circuito de civilização dos bantos. Avançando mais para o centro seria possível encontrar os pigmeus, e no extremo sul da áfrica os bosquímanos, que já são povos oriundos de matrizes genéticas bem diferenciadas em relação aos povos negros relacionados aos circuitos civilizacionais sudanês e banto. Concentremo-nos por ora nos sudaneses e nos bantos. Ainda que possam ser estabelecidas para a África Negra duas divisões mais gerais entre sudaneses e bantos, as etnias internas a estes dois grupos são de uma multi-diversidade que impressiona, não apenas no que se refere a caracteres físicos como também do ponto de vista cultural. Entre os sudaneses, nada mais distinto do que um uolof oriundo da região senegalesa em relação a um bambara ou a um mandinga do oeste sudanês. Difícil enquadrar em um único grupo dos “negros”, ou mesmo em um grupo negro apenas bipartido em sudaneses e bantos, etnias tão diversas como a dos zulus, somalis, ibos.

As diferenças entre etnias, inclusive, não se afirmavam apenas através de caracteres físicos herdados geneticamente. A cultura, como se sabe, faz parte do diferenciador étnico tanto quanto os índices biológicos. Lovejoy observa que as nações negro-africanas têm seus modos diferentes de cortar o cabelo e são reconhecidas por esta marca, que identifica a que etnia ou a que parte do território pertencem (Lovejoy, 2002: 9-39; Líbano et alli, 2003: 34). Do mesmo modo, cortes de cabelo, marcas faciais, tatuagens, vestimentas, objetos decorativos ... todos estes sinais, e uma infinidade de outros, eram muito visíveis e portadores de significado para os africanos, e também para os traficantes que precisavam lidar diretamente com os povos africanos.

O discurso das diferenças étnicas era muito eloqüente no continente africano do início do período moderno, como ainda é hoje em certas regiões da África. Acomodar lado a lado, em uma única designação, algumas das mais diferentes etnias negras, convertendo todas a um único grande grupo chamado de “raça negra”, constituía obviamente uma operação que só interessava à ponta colonial do tráfico, ao sistema de recepção e aclimatação do contingente de escravos africanos à América. Na África, os traficantes negreiros sempre souberam lidar com o jogo das etnias. Os conflitos intertribais eram freqüentemente ambíguos em seus resultados; mas, no fim das contas, conservar as divisões da humanidade negra na África interessava tanto quanto fomentar um novo tipo de unidade para a humanidade negra das colônias do Novo Mundo.

As diferenças étnicas, deste modo, interessavam em muito aos traficantes, que tinham de lidar na própria África com as operações de negociação, compra e exportação de escravos. Mas, já nos navios negreiros, eles logos se empenhavam em separar estrategicamente os indivíduos pertencentes às mesmas etnias, e costumavam pôr a ferros os chamados “cabeças quentes”, de modo a desmobilizar lideranças e se prevenir de revoltas, pois o perigo delas era constante. Já em solo americano, seja nas colônias portuguesas, espanholas ou americanas, não mais interessavam estas mesmas etnias cuja contraposição alimentava o tráfico no seu nascedouro africano. Então era hora de misturar definitivamente os tipos étnicos, evitar a formação de grupos, fortalecer a idéia de que todos eram “negros”, uma raça talhada para o serviço escravo.

Por questões práticas – em parte relacionadas a necessidades de censo e controle, mas também em parte motivadas pelos interesses de conhecer mais a fundo a massa humana escravizada no que se refere a potencialidades para os novos trabalhos que lhe seriam impostos – os administradores coloniais do trabalho escravo também tiveram de recorrer à moldagem de novas diferenças negras, em nada ou muito pouco relacionadas com as antigas etnias africanas. Precisavam saber, por exemplo, quais tipos de escravos eram mais adaptáveis ao trabalho na agricultura, ao trabalho nas minas, aos serviços domésticos, e assim por diante. Ajudaria, para os seus propósitos, conhecer não tanto as etnias originais dos negros, mas o tipo de trabalho com os quais estiveram acostumados na África, o tipo de vegetação e clima com os quais lidavam ancestralmente, e talvez conhecer algo do seu potencial de rebelião ou fuga.

Cedo surgiram algumas classificações geográficas que logo foram coladas à identificação dos negros, diferenciando-os uns dos outros, particularmente porque estas informações relacionadas aos ambientes de origem podiam ajudar a melhor entender as potencialidades dos vários grupos de negros com relação ao ambiente. Por outro lado, havia também uma contabilidade a ser registrada e uma avaliação de qualidade, por assim dizer, que permitisse identificar as potencialidades dos vários tipos de negros em relação aos diversos circuitos negreiros. Possivelmente essas combinações de fatores fez com que prevalecesse uma diferenciação dos negros relacionadas aos seus circuitos de exportação, o que implica também em uma geografia da diferença.

Os cabindas, por exemplo, aparecem como uma nova classificação negra. Na verdade, não correspondem a nada mais nada menos do que aos negros que eram exportados pelo porto da Cabinda, situado logo ao norte do Rio Zaire. Obviamente que esta categorização oculta a etnia a que pertence cada indivíduo, e pela classificação proposta não podemos saber se um negro chamado de cabinda pertencia a uma etnia como a dos nsundis ou a outra como a dos tekes, para dar exemplo de duas das várias etnias em que se especializava o porto de Cabinda em função da sua posição na geografia do tráfico.

Os congos, para dar outro exemplo, constituíam um grupo de apreensão difícil com relação a características físicas e étnicas, uma vez que por esta designação seria designado qualquer indivíduo exportado pela vasta rede comercial que se desenvolvia em torno do curso do rio Zaire (Karash, 2000: 54), o que implicava na confusão de centenas de grupos étnicos no interior de uma única designação. O mesmo pode ser dito dos angolanos e benguelas, que se referem a regiões geográfico-administrativas surgidas, no século VIII, da partilha da áfrica pelos países europeus envolvidos no tráfico. Diante da classificação de um negro como benguela, já na América Portuguesa, como saber se estamos diante de um mbundo, um mbwela, ou outra etnia?

Tanto quanto a categoria gigante de “negro” – engolidora de todas as diferença étnicas – as categorias embaralhadas a partir dos portos de exportação ou dos circuitos de comércio e apresamento dão o seu quinhão para a dissolução das etnias negras de origem no novo mundo. Os filhos de escravos verão se perder no horizonte a noção de que são iorubas, geges, ambacas, quissamas, rebolos, mbundas, mbwelas, tekes, nsundis, ou tantas outras etnias a serem afirmadas como diferenças culturais.

O processo de novas diferenciações a partir da indiferenciação de todas etnias negras na categoria “raça negra” apresentou ainda outras possibilidades, surgidas da própria vida colonial. Assim, outras diferenças criadas já na colônia são as de crioulo – o homem de pele identificada como negra nascido no Brasil – e o pardo, produto da mestiçagem de africanos com brancos europeus ou descendentes de europeus já enraizados na colônia. Definir como pardo – categoria que o indivíduo não raro ostentava com certo orgulho para distanciar-se mais da idéia de escravidão associada aos negros – implica em reintroduzir mais uma vez na diferença a ‘desigualdade’, através de uma realidade que se arrastará também para o mundo dos libertos.

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Veja a continuação deste artigo, e também o seu início, em http://ning.it/fPSHNx
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Referência do artigo: BARROS, José D'Assunção. “A Construção Social da Cor e a ‘Desconstrução da Diferença Escrava’ – reflexões sobre as idéias escravistas no Brasil Colonial” in Opsis. Universidade Federal de Goiás,campus de Catalão. Vol.10, n°1, 2010.

Para um estudo mais aprofundado, ver o livro: BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: Editora Vozes, 2009 [http://ning.it/dVUGqt].

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Obras Citadas:


BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: editora Vozes, 2009.
KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LOVEJOY, Paul. Identidade e Miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Garôo Baquaqua para as Américas. Afro-Ásia – revista da UFBA/CEAO, Salvador, n° 27, p.9-39, jan/jun. 2002.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano; FARIAS, J. B.; GOMES, Flávio dos Santos. No Labirinto das nações – africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

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