sexta-feira, 7 de maio de 2010

Igualdade, Desigualdade e Diferença

Igualdade, Desigualdade e Diferença:
três conceitos em interação


Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos se tornam os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Há certas palavras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudar a mudar o mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade, Desigualdade e Diferença são destas noções complexas que interagem entre si de diversas maneiras, e já tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio anterior* a idéia fundamental de que a confusão ou conversão de certas Diferenças em Desigualdades, e vice-versa, pode gerar problemas sociais específicos de maior ou menor gravidade. Antes de avançar na questão que conduzirá este ensaio – a da aplicação daquele referencial conceitual ao desenvolvimento da temática da Desigualdade Escrava e da Diferença Negra na formação histórica da sociedade brasileira – será oportuno recolocar alguns desenvolvimentos teóricos importantes .
Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favorecer uma maior compreensão sobre o que são, efetivamente, “diferenças” e “desigualdades”. Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e Americano, Idoso e Jovem, Cristão e Muçulmano, Operário e Camponês ... todos estes são exemplos bastante claros de “diferenças”. Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x ‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências1, ou das modalidades de ser: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou então dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto da nacionalidade, “ser brasileiro” ou “ser americano” são diferenças muito bem delineadas. Um indivíduo, em alguns casos extremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas – se pensarmos nos casos de “dupla nacionalidade” – mas não pode ser “meio brasileiro” e “meio americano”, a não ser que estejamos utilizando uma figura de retórica, e tampouco é possível encontrar uma situação intermediária entre “ser brasileiro” e “ser americano”. No universo de inúmeras nacionalidades possíveis, “ser brasileiro” e “ser americano”, enfim, não são realidades ou pólos que se opõem, mas sim diferenças que se confrontam, cada uma conservando seu próprio espaço de delimitação com referência a uma certa unidade geopolítica, a uma determinada identidade histórico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a um certo local de nascimento ou relações de filiação.
Já para aventar exemplos relativos às Desigualdades, podemos opor adjetivos como “Forte” e “Fraco”, “Instruído” e “Analfabeto”, “Rico” e “Pobre”, ou mesmo substantivos como “Liberdade” e “Escravidão”, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um aspecto ‘essencial’, mas sim a uma ‘circunstância’. Distintamente da oposição por ‘contrariedade’ que se estabelece entre Igualdade e Diferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordem das ‘contradições’. Não se considera um homem pobre ou rico, e tampouco muito instruído ou pouco instruído, senão por comparação com um outro homem. E entre o homem mais instruído e o menos instruído, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se for hipoteticamente possível imaginá-los, existem inúmeros graus (e não degraus) que podem ser percorridos. De igual maneira, o homem mais prestigiado pode passar rapidamente a ser socialmente execrado, e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora. Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a âmbitos relacionados às desigualdades: são aspectos circunstanciais e contraditórios, mutuamente reversíveis, somente compreensíveis do ponto de vista relativizador. As desigualdades, reforçaremos esta idéia, presidem em todos os casos possíveis a relações contraditórias, e não a meras oposições por contrariedade.
As contradições, este é o núcleo da questão, são sempre circunstanciais, enquanto os contrários necessariamente se opõem ao nível das modalidades de ser. Vale dizer, as contradições são geradas no interior de um processo, aparecem ou se explicitam em um determinado momento ou situação, e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os contrários não se misturam (amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distinção entre ‘contrários’ e ‘contradições’ traz importantes implicações, e disto dependerá toda a argumentação que desenvolveremos neste ensaio.

(trecho do livro A Construção Social da Cor (2009, p.19-21))

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Para ler a continuação deste texto, que corresponde ao primeiro capítulo do livro "A Construção Social da Cor", acesse http://www.scribd.com/doc/31040741/A-Construcao-Social-da-Cor-capitulo-1

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Para ler sobre com maior amplitude de exemplos outros aspectos evocados neste texto, estendendo a discussão para outras instâncias além das discussões sobre etnia - como a sexualidade, a nacionalidade e a religiosidade - ver o artigo publicado em 2005 na revista Análise Social (Lisboa):

http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aso/n175/n175a05.pdf

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